Por José Carlos Castro Sanches
A semana estava agitada ocorria na Praça Maria Aragão a Feira de Livros de São Luís – FeliS e na noite anterior de 04 de novembro de 2021, eu havia lançado o livro “Pérolas da Jujuba com o Vovô”, que escrevi em parceria com a minha neta Julie Sanches. Era tudo alegria entre nós.
Amanheceu o dia seguinte. Logo vi a primeira notícia que circulava nas redes sociais. Um grande homem que nasceu em Juiz de Fora no Estado de Minas Gerais e projetou-se na capital maranhense tornando-se mais ludovicense que muitos aqui nascidos havia partido para outra dimensão.
Era quase unanimidade entre as pessoas com as quais eu me comunicava que aquela morte não era encarada como outra qualquer, apesar de sabermos que ao chegar ela sempre traz consigo a benevolência de todos. O céu precisa de pessoas boas para contagiarem os anjos com amor, sabedoria e carinho. Todavia neste caso realmente haveríamos de reconhecer que se tratava de um cidadão muito amado por quase todos com os quais conviveu e até por aqueles que apenas ouviram falar o seu nome e pelo legado que deixou para São Luis do Maranhão, no Sítio Tamancão onde mantinha a “O Estaleiro Escola”, uma fábrica de barcos e de sonhos e, noutras plagas onde também com sua influência e amizade deixou um rastro de tristeza e lágrimas nas pessoas com as quais conviveu. São Luís estava triste e o Tamancão em lágrimas. Eu também!
A comoção era tanta que saí de casa com o propósito de acompanhar o velório que ocorria na Academia Maranhense de Letras – AML, onde o ilustre cidadão mineiro era um dos destacados membros, ocupante da Cadeira 23, patroneada por Graça Aranha.
Ao estacionar o meu veículo na rua da Paz, nas proximidades da Casa de Antônio Lobo, um gentil guardador de carros informava que o corpo havia saído há menos de 10 minutos com destino ao “Estaleiro Escola” no Sítio do Tamancão localizado à margem direita do Rio Bacanga em São Luís do Maranhão, com acesso pelo bairro Anjo da Guarda. Eu não estava seguro da informação e segui até à AML para confirmar, ao entrar no prédio encontrei um senhor com semblante de tristeza varrendo o piso vermelho e retirando pétalas e folhas com uma vassoura.
Ele e um outro senhor que saiu de trás da cortina púrpura confirmaram o destino do corpo. Naquele momento encontrei com um historiador maranhense – com a mesma pretensão minha – de dar o último adeus ao Mestre. Como ele estava sem transporte o convidei para irmos juntos ao Sítio do Tamancão que até aquele momento eu não sabia como chegar ao destino – logo consultei o Google Maps que me orientou a seguirmos até o endereço sugerido. Depois de algumas curvas, quebra-molas, aclives, declives, semáforos, ruas e avenidas nem sempre bem mantidas, cruzamos uma pequena ponte e avistamos um lugar bonito, agradável e aconchegante com barcos, quadros, ferramentas, objetos de uso nas manutenções e construções de embarcações tradicionais do Maranhão, tudo muito bem cuidado de frente para o Rio Bacanga de onde avistávamos a Cidade dos Azulejos no lado oposto naquela tarde ensolarada de 05 de novembro de 2021.
Ao chegarmos na cabeceira da ponte dois carros da funerária se deslocavam em sentido contrário – parei o veículo para deixá-los passar – naquele momento haviam deixado o corpo do Mestre para visitação dos familiares, amigos, alunos, comunitários e admiradores de toda a cidade que chegavam ao local.
Paramos no estacionamento, descemos e avistamos logo à frente um vigilante solícito, dois alunos chorosos sentados na calçada do estaleiro próximos aos barcos em manutenção e construção, e um jovem senhor que vinha ao nosso encontro cabisbaixo, com tristeza nos olhos – ao encontrá-lo perguntei-lhe: você é o filho do Mestre? Ele respondeu que era F.C.– logo conversamos e nos despedimos, ele saía e nós chegávamos ao local onde o corpo estava sendo velado. Esposa, filho, filhas, amigos e admiradores se juntavam em volta do caixão – enquanto dois homens com um tripé, câmara e filmadora registravam o momento para a posteridade. Café, chá, açúcar, bolachas e outros mantimentos sobre a mesa à disposição dos visitantes, consternados pela perda e falta.
Conversei com os familiares do Mestre, o filho, a esposa, as filhas, a cozinheira, amigos, alguns alunos, conhecidos, jovens, adultos e crianças da comunidade todos estavam desolados, inconformados e consternados pela perda irreparável.
Logo chegou uma comitiva formada por adultos, jovens e crianças da comunidade com cartazes e palavras de reconhecimento ao Mestre. Uma bela demonstração de simplicidade que pude presenciar naquele momento ímpar.
Nunca em toda minha vida havia presenciado uma cena de tanta pureza no choro daqueles jovens em volta do caixão – era a expressão do amor que sentiam pelo Mestre que os ensinava a construir e reformar embarcações. Aquela comunidade estava deveras abatida, o sentimento era real. As lágrimas escorriam dos olhos avermelhados e a dor da perda se fazia presente nas manifestações de todos que ali estavam – eles cantavam chorando como se a esperança que o Mestre suscitou neles houvesse morrido. Mas, ele ainda permanece vivo por meio da sua história, estejam certos disso.
Após o encerramento da homenagem uma senhora tomou a palavra e os fez refletir que a semente plantada pelo Mestre deveria ser irrigada e mantida por todos sem perderem a essência e os fundamentos que o faziam reconhecer a grande importância daquele homem para aqueles jovens e crianças inseguros diante do futuro naquela comunidade carente de quase tudo; mais rica de amor e gratidão ao Mestre. Não sei dizer o que havia ocorrido entre eles para que todos tivessem tanta proximidade – eram mais de duas dezenas de jovens e crianças em volta do caixão – como se quisessem abri-lo para tocarem o seu rosto, ou quiçá trazê-lo a vida novamente, enquanto as lágrimas pingavam no vidro do caixão que permitia visualizar o rosto do indefeso Mestre.
Visualizei em volta da escola, vi o rio extenso e a linda paisagem da cidade de São Luís do outro lado da margem, talvez por isso o Mestre tenha escolhido aquele lugar para fazer a sua fábrica de barcos e de sonhos – porque dali ele podia construir os barcos e vigiar a cidade que tanto amava. O ambiente é maravilhoso, homens pescando, crianças tomando banho, barcos ancorados, casas vizinhas adjuntas à escola que se abriga ao lado do Estaleiro Escola. Ali as pessoas parecem viver num paraíso, naquele lugar magnético que o mineiro de Juiz de Fora escolheu para ser a sua segunda casa e compartilhar um pouco do que sabia e tinha com os moradores ao derredor daquele oásis plantado no deserto.
Pelo que escutei havia algum tempo que o Mestre não voltava à fábrica, atormentado pela doença que o maltratava e o levou à morte. Enquanto isso as pessoas que ele desenvolveu para liderar tomavam conta do Estaleiro Escola como se fossem delas, e na verdade é – com senso de propriedade exemplar, admirável, porque foram ensinados a valorizar o outro e zelar pelo bem coletivo com o mesmo entusiasmo que zelam dos seus. Uma grande lição de vida que também aprendi durante a breve passagem pelo Sitio do Tamancão.
Em cada conversa eu me surpreendia. A cozinheira disse da simplicidade do Mestre quando chegava na escola; a filha da cozinheira me apresentou com carinho as instalações da antiga fábrica, hoje Estaleiro Escola e áreas circunvizinhas – tudo construído com muito amor – é fácil perceber. Ela acrescentou que o Mestre não tinha sequer uma sala para dizer que era sua – ao chegar no Estaleiro Escola (Fábrica de barcos e de sonhos) ele visitava todas as áreas, conversava com as pessoas, orientava, reunia nas frentes de trabalho, alimentava-se com os trabalhadores, alunos e visitantes – e por vezes tirava do seu próprio bolso os recursos necessários para suprir as necessidades, sem reclamar de nada. Dizia ela: “não reclamava de absolutamente nada, apenas encontrava solução para tudo”. Disse-me também que ele sempre estava alegre, disposto a resolver os problemas, não reclamava e sempre encontrava uma solução. Era um homem destemido, decidido a realizar e fazer a diferença. Por meio da ação mobilizava as pessoas e as influenciava sem uso da força, apenas do convencimento.
O encarregado da fábrica de sonhos contou-me que quando o Mestre chegava no estacionamento os cachorros corriam ao seu encontro, parece que sentiam sua presença de longe. Ele os acariciava, brincava e alimentava. Essa era a recepção amigável, depois seguia para a cozinha conversava com as cozinheiras e continuava a peregrinação por todas as áreas da fábrica de barcos até que percorria todos os ambientes –conversando e orientando as pessoas com as quais convivia – tudo o que o encarregado falou; reforçou o que havia dito a filha da cozinheira.
O Mestre não tinha uma sala com cadeira e ar condicionado para ficar e desfrutar das regalias do cargo, ele fazia questão de seguir o que o seu pai o ensinou quando era gestor de um hospital nas Terras de Minas Gerais. O modelo de gestão do seu pai o influenciou ao ponto de seguir os seus passos. Ao final da conversa o encarregado citou que o maior barco que estava no estaleiro tinha 15 anos em fabricação, estava em fase de acabamento e deveria ser lançado ao mar em 2022. Logo pensei que o barco deveria levar o nome do Mestre – em reconhecimento – por sua dedicação à navegação e vocação pelas embarcações tradicionais do Maranhão.
Na conversa que tive com o seu filho também em lágrimas junto ao caixão – contou-me do agravamento da doença e da vida abreviada do seu pai em decorrência de um AVC. A dor era estampada na feição do filho que carinhosamente recebia os visitantes juntamente com os demais familiares e amigos presentes.
Era chegada a hora de retornarmos para casa – convidei o professor que me acompanhou na viagem – confabulamos refletindo sobre a vida e a nossa fragilidade. Nos despedimos dos anfitriões – não pudemos mais abraçar o Mestre que seguiria para o crematório no dia seguinte. Atendendo ao seu pedido em vida para ser cremado e lançadas as cinzas na vegetação do Sitio do Tamancão em volta do Estaleiro Escola. Fato que muito incomodou o meu parceiro por julgar que no passado eram queimados os homens e mulheres que eram considerados perversos, maus – dizia ele então, que o Mestre merecia uma sepultura de envergadura na fábrica de barcos e sonhos que ele criara naquele lugar lindíssimo, onde ele viveu a maior parte da sua vida construindo e ensinando.
Hoje sai de casa com o propósito de dar o último adeus ao engenheiro e mestre em desenvolvimento urbano que cruzou a minha vida pelo legado histórico deixado em São Luís em especial pelo empenho em torná-la Patrimônio da Humanidade e ao envolvimento com a literatura quando em novembro de 2020 tive o privilégio de conversarmos sobre a minha decisão de concorrer a uma cadeira para a AML, sendo muito bem acolhido por ele naquela oportunidade.
Enquanto as lágrimas escorrem, o barco segue com a vela enfunada guiada pelo Mestre rumo ao desconhecido. A vida é um Sopro Divino! E a morte é uma certeza que não queremos aceitar como verdade. Por isso sofremos a perda irreparável e prematura do Mestre Luiz Phelipe Andrès, que certamente estará ao lado do pai para contar em detalhes sobre o seu amor a São Luís; que pelo seu empenho tornou-se Patrimônio da Humanidade.
Ao Mestre eu tiro o chapéu. Em sua homenagem estará gravado o seu nome na pedra fundamental da Ilha do Amor, nos barcos e navios que circularão pelos rios e mares por todo o mundo, partindo de São Luís juntamente com as cinzas que se espalharão pelo ar e encontrarão solo fértil para adubar as sementes, jardins floridos, árvores frondosas e frutos suculentos. Enquanto, os barcos em cores vibrantes percorrem as águas em volta da Ilha de Upaon-Açu que chora sua partida, mas alegra-se com sua passagem marcante por estas terras tupinambás que escolheu para morar e amar. A gratidão que tomou forma de lágrimas, poderá se transformar em sorriso, quando todos tomarem posse da missão de um homem que viveu para realizar e deixou o seu legado de simpatia, empatia, trabalho árduo e amor ao próximo para a posteridade.
Pelo que escutei dos alunos e comunitários eles querem fazer a última homenagem ao Mestre com um passeio de barco, não sei se o desejo será realizado. Ouvi também falarem que dedicarão ao Mestre um lindo quadro que passará a ocupar lugar de destaque na parede principal do prédio que possivelmente receberá o nome de “Estaleiro Escola Luiz Phelipe Andrès”, assim, encerro com tristeza essa narrativa, sem antes declarar que apesar da perda renasce uma esperança de que a semente plantada e cultivada produza frutos doces como a vida do admirável Mestre Luiz Phelipe de Carvalho Castro Andrès.
Luiz Phelipe deixou uma grande lição de vida: a simplicidade que o tornou amado por quase todos que se juntaram a ele na breve passagem pela Terra, nos 72 anos de vida abundante, inspiradora, criativa, cativante e produtiva. Que Deus o tenha em bom lugar e recompense o seu empenho com o legado deixado para aqueles que o sucederem.
Ao grande Mestre Luiz Phelipe Andrès e ao seu legado no Maranhão dedico esta crônica. Aos que o sucederem na missão de fazer o barco torto para se empinar nas águas certas os meus sinceros votos de sucesso e realização.
Após a escrita desta crônica recebi a informação de um amigo que a última viagem de barco do Mestre ocorreu no dia 06 de dezembro de 2021, quando o seu corpo foi levado do Porto do Estaleiro Escola até a Rampa Campos Melo, no Cais da Praia Grande da Cidade de São Luís do Maranhão de onde o corpo seguiu para o crematório no Cemitério Jardim da Paz. Siga em paz grande Mestre.
São Luís, 05 de dezembro de 2021.
José Carlos Castro Sanches
É químico, professor, escritor, cronista e poeta maranhense. Membro Efetivo da Academia Luminense de Letras, da Academia Maranhense de Trovas, da Associação Maranhense de Escritores Independentes, da União Brasileira de Escritores e do PEN Clube do Brasil.
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