“Nós sempre temos tendência de ver coisas que não existem, e ficar cegos para as grandes lições que estão diante de nossos olhos. ” Paulo Coelho
Esclareço de antemão que não tenho preconceito, nem a pretensão de denegrir a honra ou imagem de qualquer pessoa ou grupo. Esta é uma obra de ficção e qualquer semelhança será mera coincidência.
Conheci um deficiente visual durante um treinamento que participei no Planeta Mercúrio – o primeiro e menor de todos os planetas que compõem o sistema solar e que se localiza mais próximo do sol. A viagem foi longa e cansativa, em uma nave espacial tripulada por criaturas estranhas, misto de homens e sapos de olhos esbugalhados, mas, o aprendizado será eterno. Compartilho com os meus leitores esta experiência única.
“A maior deficiência não está no corpo do deficiente físico, mas, na alma do preconceituoso.” Sebastião Barros Travassos
Preservarei o local do treinamento e o nome do palestrante para assegurar a confidencialidade e não gerar constrangimento aos envolvidos, uma vez que essa estória é repleta de situações com as quais não tinha familiaridade e, tudo que considerei incomodo pode não passar de desconhecimento da conduta de um cego em sua rotina diária.
“ A alegoria chega quando descrever a realidade já não nos serve. Os escritores e artistas trabalham nas trevas e, como cegos, tateiam na escuridão. ” José Saramago
Tudo começou assim. O deficiente visual era conhecido do palestrante que o convidou para participar daquele treinamento com o propósito de motivá-lo a compartilhar suas experiências, com um público seleto e diversificado.
O jovem branco, forte, de estatura mediana, apesar da sua deficiência era muito dinâmico, participativo e comunicativo. Se autodenominava eficiente visual. Contava com orgulho que gostava de ser “independente”, ou seja, fazer por conta própria as coisas que necessitava sem ocupar os outros, exceto quando realmente era impossível realizar sozinho.
“Existem os cegos por deficiência, os cegos pela ignorância e os cegos porque preferem permanecer assim. Das 3 situações a última é a pior! ” Daniel Godri Junior
Ao terminar o treinamento o palestrante perguntou se alguém poderia dar uma carona para Mercury, porque ele não estava acompanhado e precisava de assistência. Apesar de não conhecer muito bem aquele planeta, me apresentei para levá-lo até a sua residência no bairro Galileu. Caminhamos por algumas ruas do centro de Mercúrio, até o local onde havia estacionado o meu carro.
Durante o trajeto ajudei “Mercury” atravessar as ruas e a sentar-se no banco do carro. Apesar da deficiência visual ele tinha uma admirável capacidade de percepção e aguçada sensibilidade auditiva. Entrei no carro, coloquei o cinto de segurança e iniciamos a longa viagem até o destino.
O palestrante havia comentado durante o treinamento que os deficientes visuais têm a capacidade auditiva extremamente desenvolvida e gostam de sentir as pessoas através do contato corporal. Eu não sabia exatamente o que significava isso – aprendi na prática. Você entenderá mais adiante a que estou me referindo. Siga em frente com a leitura!
“Só quem porta sensibilidade consegue observar pelo olho mágico da vida o sentimento alheio, capaz de tocá-lo. ” Dani Leão
Então avançamos. Eu dirigindo o veículo e Mercury ao meu lado, no banco do passageiro. Muito conversador e curioso fez inúmeras perguntas com o propósito de me conhecer melhor (penso assim). Prosseguimos a viagem. Ele explicou onde morava e como eu deveria fazer para chegar até à sua casa. Pediu para que parássemos em um lugar onde vendesse “MercuriCap” porque ele queria comprar um “Carnê” para tentar ganhar um carro. Ao passar pelo Philippe District parei o carro e ele empolgado, pegou “cinco moedas de mercúrio” e comprou o desejado “Carnê”, numa felicidade sem igual, parecia ter a certeza de ser premiado.
“ Que época terrível esta, onde idiotas dirigem cegos ” William Shakespeare
Seguimos viagem. Quando inesperadamente ele começou a apalpar os meus braços, pernas, passava a mão no meu peito, aquilo me incomodava, mas não sabia o que fazer. Nunca tinha acontecido algo parecido comigo, era uma experiência diferente para mim.
Um homem me alisando dentro do meu próprio carro sem que eu soubesse o que fazer. Acho que poderia fazer muitas coisas, mas de verdade fiquei paralisado diante de tamanho atrevimento. De repente ele desceu a mão e segurou nos meus órgãos genitais e não largava. Fiquei deveras anestesiado e sem ação frente àquela novidade. Não sabia se estava diante de um cego “qualira” ou era uma manifestação natural dos deficientes visuais.
A viagem continuava e eu cada vez mais constrangido sem saber o que fazer ou dizer. Perguntava incessantemente para Mercury, quase que desesperado, se estava perto da sua casa – sempre dizendo ao mesmo por onde estava passando, com a esperança de me livrar daquela situação incomoda e melindrosa. Um homem de 55 anos, pai de família, casado, sendo apalpado por um cego dentro do seu próprio veículo, num planeta distante, sem poder fazer nada.
“Qualquer tipo de maldade é resultado de alguma deficiência.” Sêneca
A minha felicidade foi enorme quando ele disse que deveria entrar na primeira rua à direita e parar em frente à terceira casa amarela à esquerda. Que alivio meu Deus! Parei o carro e ele desceu, deixou a porta do carro aberta e seguiu em frente. Abriu o portão e a porta da sua casa e entrou. Eu estava livre daquele “assediador de motorista inocente. ”
“A verdadeira deficiência é aquela que prende o ser humano por dentro e não por fora, pois até os incapacitados de andar podem ser livres para voar. ” Thaís Moraes
Se não for oportunismo, confesso que é uma experiência difícil para quem nunca esteve diante de situação parecida. Com o passar dos dias e conhecimento de causa, aquele momento desagradável passou a ser motivo de galhofa e inspiração para o poeta, que com um flash de letras acende uma fogueira de livros, com um pingo de afeto produz o amor e, no piscar de um cego enxerga a sabedoria do Rei Salomão.
“Cego não é quem perde a visão. Cego é quem perde a sensibilidade e deixa o desamor apagar as luzes da alma. ” Day Anne
Até hoje não sei se Mercury desmunhecava ou aquela era apenas uma forma de comunicação comum aos deficientes visuais. Mas, posso afirmar que depois dessa experiência vai ser difícil viajar sozinho com um cego de mão grande segurando o meu s… pelo planeta Mercúrio.
Enquanto aguardo notícias de Mercury. Diga-me como você sairiam desta situação?
“ Subi a montanha para alcançar as estrelas, voltei invejando os cegos e surdos que encontrava no caminho. ” Omar Khayyam